Compliance Comportamental: Uma visão inovadora para o Compliance Anticorrupção em Portugal

Izabel de Albuquerque Pereira[1]

Em março de 2021, o Governo português aprovou a Estratégia Nacional Anticorrupção 2020-2024[2] (“ENAC”), que identificou sete prioridades para se enfrentar, de forma eficaz, a corrupção no país. Entre estas, destacam-se as prioridades 2 e 3, pois sugerem a implementação obrigatória de Programas de Compliance nas organizações portuguesas dos setores público e privado, como forma de promoção da ética e de prevenção da corrupção.

Nove meses se passaram até que, finalmente, no dia 09 de dezembro de 2021, em plena comemoração ao Dia Internacional Contra a Corrupção, foi publicado o Decreto-Lei 109-E/2021[3], que cria o Mecanismo Nacional Anticorrupção (“MENAC”) e estabelece o Regime Geral de Prevenção da Corrupção (“RGPC”). Portanto, a partir de junho de 2022[4], data em que entra em vigor o referido diploma legal, as empresas com sede em Portugal (e as sucursais em território português de empresas com sede no estrangeiro), que empreguem cinquenta ou mais trabalhadores, deverão implementar um Programa de Compliance Anticorrupção[5].

Tal Programa deverá incluir, no mínimo, um plano de prevenção de riscos de corrupção e infrações conexas, um código de conduta, um programa de formação e um canal de denúncias[6]. Adicionalmente, as entidades abrangidas pelo RGPC deverão designar um responsável por garantir e controlar a aplicação do Programa, ou seja, um Compliance Officer[7].

É aqui que, na minha visão, as Ciências Comportamentais[8] apresentam-se como fundamentais para auxiliar as organizações portuguesas nesta importante missão de prevenir a corrupção.

Isto porque, após alguns anos de experiência corporativa como Compliance Officer (no Brasil e em Portugal), “testando” algumas estratégias e medidas de Compliance Anticorrupção (umas deram certo, outras nem tanto), na tentativa de fortalecer a cultura de integridade nas organizações em que trabalhei, eu compreendi que, sem a aplicação dos conceitos e insights das Ciências Comportamentais, dificilmente eu alcançaria este propósito.

Esta compreensão surgiu, sobretudo, após eu ler o livro “MUITOS: Como as Ciências Comportamentais podem tornar os Programas de Compliance Anticorrupção mais efetivos?”[9]. Os autores, de trajetórias profissionais e acadêmicas diversas (Economia, Filosofia, Psicologia e Direito), propõem uma “virada comportamental”[10] nos Programas de Compliance, ou seja, transferir o seu foco para as pessoas, para as suas ações (por vezes, até inconscientes) e para os seus dilemas cotidianos, sem se limitar, unicamente, às regras formais e aos mecanismos de controle.

Ao combinar várias disciplinas, como a Economia Comportamental, a Ética Comportamental, a Sociologia, a Psicologia Social, a Psicologia Cognitiva e a Neurociência, as Ciências Comportamentais produzem – e aplicam – estudos científicos com o objetivo de descrever que fatores cognitivos e contextuais influenciam a tomada de decisão por “agentes reais”. No cenário empresarial, estes “agentes reais” são as pessoas comuns (como eu e você) que precisam tomar decisões por vezes difíceis e complexas, em meio a pressões contextuais e dinâmicas temporais perversas que enfrentam no dia-a-dia nas organizações.

As Ciências Comportamentais convidam-nos, portanto, a refletir sobre por que podemos cometer desvios éticos sem sequer percebermos e por que somos tão criativos quando precisamos justificar algum desvio ético que cometemos.

Para além disto, as Ciências Comportamentais indicam-nos como podemos implementar Programas de Compliance Anticorrupção que sejam realmente efetivos (e não meros Programas “de papel”). Para tanto, será que, ao invés de olharmos, unicamente, para o cumprimento dos requisitos legais (como se fosse um checklist), não devemos voltar a nossa atenção para o objetivo central dos Programas de Compliance, qual seja, o de mudar comportamentos para a criação de uma cultura ética nas organizações?

Infelizmente, os próprios diplomas legais nem sempre nos ajudam neste sentido. No recente Decreto-Lei português, em uma breve “procura” pela palavra “comportamento”, por exemplo, encontrei uma única referência. Ao procurar pela palavra “cultura”, também encontrei apenas uma referência. Finalmente, ao procurar pelas palavras “ética” e “integridade” (esta última no sentido de “cultura de integridade”), encontrei três e quatro referências, respectivamente. Ou seja, apesar do comportamento humano ser reconhecido como algo fundamental para a criação de uma cultura organizacional de integridade, o diploma legal português parece ter considerado questões unicamente formais. No seu texto, fala-se muito sobre “controle” e “sanção”, mas e sobre comportamento?

Através dos insights das Ciências Comportamentais conseguimos compreender por que muitas medidas de Compliance que implementamos nas organizações (acreditando ser a mais apropriada para evitar uma determinada conduta inadequada), podem se revelar verdadeiras “armadilhas” do ponto de vista comportamental. Quantas vezes, na minha experiência prática como Compliance Officer, eu sugeri novos controles, novas políticas e procedimentos, na tentativa de prevenir desvios éticos, que, em um primeiro momento, eu tinha a convicção de que causariam o impacto positivo esperado, mas que, no final, se revelaram ineficazes? Isso porque o meu foco estava, unicamente, naquele pequeno número de pessoas conhecidas como “maçãs-podres”, que aproveitam toda e qualquer oportunidade para obter vantagens indevidas.

Após conhecer as Ciências Comportamentais eu percebi que, para implementar um Programa de Compliance Anticorrupção realmente efetivo, é preciso adotar uma abordagem mais realista sobre os aspetos psicológicos do ser humano e mais pluralista, ou seja, capaz de alcançar não somente as “maçãs-podres”, mas também aquela grande maioria de pessoas (incluindo eu e você) que, como já referido, podem cometer desvios éticos sem sequer perceber.

Assim, como explicam os autores do livro “MUITOS”, pequenos ajustes nas ferramentas tradicionalmente utilizadas por nós, profissionais de Compliance, e a adoção de novas ferramentas propostas pelas Ciências Comportamentais, podem aumentar, e muito, a efetividade dos nossos Programas. Para citar um exemplo de uma interessante ferramenta das Ciências Comportamentais, destaco os nudges[11], que são alterações sutis, muitas vezes impercetíveis, no contexto em que as pessoas tomam decisões, e que geram mudanças significativas no comportamento.

O “Compliance Comportamental”, traduz-se, portanto, em uma nova abordagem para os Programas de Compliance Anticorrupção, através da adoção de medidas e intervenções de prevenção, deteção e remediação de desvios éticos nas organizações, baseadas em evidências das Ciências Comportamentais sobre a realidade cognitiva e comportamental das pessoas.

Mas o que muda na prática? Que características nós, os profissionais de Compliance que conhecemos e aplicamos os conhecimentos das Ciências Comportamentais, apresentamos, que permitem trazer mais efetividade para os nossos Programas de Compliance Anticorrupção, através de mudanças reais de comportamentos?

São três principais características[12]:

  • Compreendemos que as nossas ideias sobre que medidas de Compliance podem funcionar estão, muitas vezes, enviesadas (o que pode nos levar a erros de uma forma sistemática e previsível);
  • Prestamos mais atenção ao que dizem os estudos científicos (que tendem a ser realizados com um maior rigor metodológico e que costumam ser criticamente avaliados por outros cientistas); e
  • Defendemos uma cultura de experimentação, ou seja, sabemos que, antes de implementarmos medidas de Compliance, é preciso testar (em uma escala reduzida) as nossas ideias e medir os resultados, para sabermos o que, de fato, funciona ou não[13]

Por esta razão, a adoção da base teórica e das ferramentas fornecidas pelas Ciências Comportamentais na implementação de Programas de Compliance Anticorrupção, podem apresentar, pelo menos, cinco vantagens em relação às práticas tradicionais:

  • Mais efetividade das medidas de Compliance implementadas;
  • Capacidade de avaliação mais rigorosa da eficácia e da eficiência das medidas de Compliance implementadas;
  •  Capacidade de uma demonstração mais objetiva do impacto das medidas de Compliance implementadas no comportamento das pessoas;
  •  Redução dos custos econômicos das medidas de Compliance implementadas (por meio de simplificações, ajustes e da criação de nudges, por exemplo); e
  • Redução dos custos “comportamentais” dos mecanismos de controlo sobre a motivação e o desempenho dos seus destinatários.    

Minha sugestão, portanto, é que as empresas portuguesas optem pela aplicação do conhecimento e dos insights das Ciências Comportamentais desde o início da implementação dos seus Programas de Compliance Anticorrupção, para que possam largar de um ponto de partida muito mais avançado do que, por exemplo, as empresas brasileiras largaram lá atrás, nos anos de 2013 e 2014, quando começaram a sua “corrida” para implementar estes Programas no Brasil[14].


[1] Head of Behavioral Compliance na CLOO Behavioral Insights Unit. Mestre e graduada em Direito pela UERJ-Rio. Especialista e certificada internacionalmente em Ética e Compliance (CCEP-I) pela Society of Corporate Compliance & Ethics (SCCE). Mais de 15 anos de experiência em empresas multinacionais, tendo atuado como Head of Ethics & Legal Compliance na TAP (Portugal), Diretora Jurídica e Compliance Officer na Capgemini (Brasil) e Gerente Jurídica na Accenture (Brasil). Co-fundadora do NOVA Compliance Lab (NCL, Lisboa) e do Instituto Compliance Rio (ICRio, Brasil), e idealizadora da IA+P (www.iamaisp.com).

[2] A Resolução do Conselho de Ministros n.º 37/2021, que aprova a ENAC, encontra-se disponível em: https://dre.pt/home/-/dre/160893669/details/maximized. Acesso em 08 de fevereiro de 2022.

[3] Disponível em: https://dre.pt/dre/detalhe/decreto-lei/109-e-2021-175659840. Acesso em 08 de fevereiro de 2022.

[4] Artigo 29 do Decreto-Lei n. 109-E/2021: “O presente decreto-lei entrar em vigor 180 dias após a sua publicação”.

[5] Artigo 2, n. 1 do Decreto-Lei n. 109-E/2021.

[6] Artigo 5, n. 1 do Decreto-Lei n. 109-E/2021.

[7] Artigo 5, n. 2 do Decreto-Lei n. 109-E/2021.

[8] A utilização das descobertas desse campo de conhecimento já despertou, inclusive, o interesse da OCDE, que publicou um material especialmente dedicado à aplicação das Ciências Comportamentais à integridade (OCDE, Behavioural Insights for Public Integrity: Harnessing the Human Factor to Counter Corruption. Paris: OCDE Public Governance Reviews, OCDE Publishing, 2018). Ainda, nos estudos econômicos, por exemplo, as Ciências Comportamentais renderam o Prêmio Nobel de Economia a Daniel Kahneman (em 2002), a Richard Thaler (em 2017) e ao trio Abhijit Banerjee, Esther Duflo e Michael Kremer (em 2019).

[9] MAURO, Carlos; CABRAL, Gabriel; CAPANEMA, Renato; RAMOS, Tânia. MUITOS: Como as Ciências Comportamentais podem tornar os Programas de Compliance Anticorrupção mais efetivos?Editora Brasileira. World Observatory. 2021.Disponível em: www.livromuitos.com.br. Acesso em 04 de fevereiro de 2022.

[10] Em Portugal, uma expressão correspondente pode ser “viragem comportamental”.

[11] Este termo se popularizou depois que os norte-americanos Cass Sustein (vencedor do Prêmio Holberg) e Richard Thaler (vencedor do Prêmio Nobel de Economia) publicaram a primeira edição do livro “Nudge”, em 2008. Em 2021, uma nova edição, revista e atualizada, foi publicada: THALER, Richard H; SUSTEIN, Cass R.Nudge: the final edition.New York: Penguin Books, 2021.

[12] MAURO, Carlos; CABRAL, Gabriel; CAPANEMA, Renato; RAMOS, Tânia. op. cit., p. 54-56.

[13] Para maiores de detalhes sobre como realizar estes testes, vide: MAURO, Carlos; CABRAL, Gabriel; CAPANEMA, Renato; RAMOS, Tânia. op. cit., p. 62-68.

[14] Este artigo foi publicado no LinkedIn e encontra-se disponível em: https://www.linkedin.com/feed/update/urn:li:activity:6912775025993363457/