Prevenção e combate à corrupção transnacional – a responsabilidade de governos, empresas e profissionais liberais

O governo português aprovou em março de 2021 a versão final[1] da Estratégia Nacional Anticorrupção 2020-2024, listando a cooperação internacional como um dos eixos prioritários. Os desdobramentos práticos dessa decisão, em termos legais e regulatórios, ganham ainda mais relevo após as sanções impostas por Estados Unidos e aliados a Vladimir Putin e supostos apoiadores. E interessam não apenas a Portugal.

Poucas semanas após o início da guerra na Ucrânia, anunciou-se uma força-tarefa multinacional para localizar e confiscar ativos pertencentes, em última instância, a oligarcas russos apoiadores do Kremlin. Até o final de abril de 2022, países da União Europeia haviam apreendido[2] mais de 28 bilhões de euros em ativos, incluindo quase 6,5 bilhões de euros em imóveis, obras de arte, helicópteros e embarcações — entre elas, iates luxuosos apreendidos pela Espanha em Barcelona (super iate Valerie, 85 metros de cumprimento, avaliado em 140 milhões de euros) e em Maiorca (Tango, 78 metros, 80 milhões de euros).

Em geral, quando adquirem bens de luxo, corruptos buscam ocultar a propriedade. Não é incomum que tais bens sejam registrados como propriedade de pessoas jurídicas incorporadas em jurisdições pouco transparentes. Essas pessoas jurídicas são consideradas “empresas de fachada”, uma vez que não possuem escritórios ou funcionários e nem sequer têm presença na Internet. Dada a pouca transparência da sua composição societária, é extremamente complicado identificar o beneficiário final, isto é, o real proprietário da empresa de fachada e último beneficiário de suas operações.

Numa época em que a identificação e o confisco de bens adquiridos ilegalmente passam ao centro da agenda global, cabe recordar que não apenas governos nacionais, mas também empresas e profissionais liberais devem estar cada vez mais atentos a questões envolvendo a corrupção transnacional, em particular a chamada grande corrupção (“grand corruption”), assim definida em contraste com a pequena corrupção (“petty corruption”).

Diferentemente da chamada “pequena corrupção” (“petty corruption”), a grande corrupção (“grand corruption”) envolve grandes quantias e é essencialmente transnacional, porque os subornos são geralmente pagos em um país e recebidos em outro. Enquanto a petty corruption envolve cidadãos e pequenos empreendedores em suas relações diretas com burocratas de nível de rua, a grand corruption envolve, de um lado, profissionais e empresas com posição de destaque na sociedade e, de outro, agentes públicos e políticos em altos postos governamentais. Diversamente da petty corruption, que se realiza numa relação direta, sem intermediários, a grand corruption precisa envolver intermediários, os chamados enablers, isto é, os “viabilizadores”. Para que pagamentos de alta monta não sejam detectados pelos controles públicos, pagadores de suborno utilizam-se de complexos arranjos de pagamentos, muitas vezes utilizando invoices falsos ou estruturas jurídicas complexas, como trusts ou pessoas jurídicas abertas em jurisdições pouco ou nada transparentes. Desta forma, profissionais que prestam assessoria jurídica ou contábil internacional, por exemplo, são cruciais para efetivar subornos pagos em esquemas de grande corrupção. Mas não apenas os escritórios de Direito ou de Contabilidade: profissionais do setor imobiliário, por exemplo, também são altamente relevantes para se operacionalizar a lavagem de dinheiro, uma vez que imóveis de luxo são os ativos mais buscados por criminosos internacionais.  

Dada a complexidade dos processos de pagamentos de valores indevidos e dada a posição dos atores envolvidos, uma das características da grande corrupção é o alto grau de impunidade. Nos últimos anos, porém, alguns avanços têm sido notados no enfrentamento à grande corrupção transnacional, devidos, em larga medida, ao papel do jornalismo investigativo, que trouxe ao domínio público escândalos como o “Panama Papers” e o “Pandora Papers”, além do caso mais significativo para a comunidade lusófona: o “Luanda Leaks”.

As revelações trazidas pelo jornalismo investigativo modificaram o panorama do debate internacional sobre corrupção transnacional, incluindo o confisco de ativos.

No ano passado, por exemplo, o Painel de Alto Nível sobre Responsabilidade, Transparência e Integridade Financeiras Internacionais para Alcançar a Agenda 2030, conhecido como “Painel FACTI” (FACTI é o acrônimo para Financial Accountability, Transparency and Integrity), publicou o seu relatório final[3]. Criado para fazer recomendações baseadas em evidências para preencher as lacunas existentes no sistema internacional, o Painel FACTI destacou, entre outras 13 prioridades, o papel dos enablers. Nesse item, o painel sugere que governos nacionais desenvolvam e acordem diretrizes e padrões internacionais para profissionais dos setores financeiro, jurídico e contábil, além de outras profissões relevantes nessa agenda. Sugere, ainda, que tais padrões sejam incluídos nos arcabouços regulatórios nacionais, com supervisão apropriada.

Assim, a demanda por mais transparência e integridade nas relações público-privadas tende a crescer, incluindo aspectos relacionados à composição societária de pessoas jurídicas – a agenda da transparência do beneficiário final – e a obrigações para que empresas e profissionais comuniquem a autoridades de inteligência financeira adequadamente quaisquer atividades suspeitas de seus clientes. O setor privado, incluindo associações profissionais, podem apoiar as discussões a respeito do desenho exato dessas novas atribuições: os controles serão mais efetivos se forem factíveis e fizerem sentido nas dinâmicas das empresas e das atividades de profissionais liberais.

E as regulações nacionais serão acompanhadas de perto, principalmente pelos atores que se relacionam com aquele determinado país. Certamente os laços econômicos, culturais e linguísticos entre países lusófonos sugerem que há grande atividade em torno dos crimes de lavagem de dinheiro envolvendo agentes de língua portuguesa. O já citado “Luanda Leaks” demonstrou esses vínculos entre Angola, Portugal e Brasil.

Nesse sentido, os desdobramentos da citada Estratégia Nacional Anticorrupção 2020-2024, de Portugal, em particular o eixo sobre cooperação internacional, interessam sobremaneira aos países de língua portuguesa, além de outros países com os quais Portugal mantém estreitas relações, como Espanha e outros parceiros da União Europeia. Não só aos governos nacionais, mas também a empresas e profissionais autônomos.

Fabiano Angélico
Pesquisador e doutorando na Università della Svizzera italiana (USI), Suíça, em dupla titulação com a Fundação Getúlio Vargas, Brasil.
Consultor internacional em temas anticorrupção.
Colaborador do Nova Compliance Lab

Disclaimer: Este artigo reflete a opinião do autor e não do NCL.


[1] Ver https://justica.gov.pt/Estrategia-Nacional-Anticorrupcao-2020-2024

[2] Ver comunicado oficial da Casa Branca divulgado em 28 de abril de 2022 (https://www.whitehouse.gov/briefing-room/statements-releases/2022/04/28/fact-sheet-president-bidens-comprehensive-proposal-to-hold-russian-oligarchs-accountable/). Os valores em dólar foram convertidos para euros.

[3] Ver  https://www.factipanel.org/report, em particular “Recommendation 6: Enablers”